a violência do dia caí-me em cruz dentro e fora
a vida desce até um certo lugar
tão poucas vezes visitado
como um tempo deserto
seco e surrealista
e uma certa obstinação no rosto
podia dizer que estou neste humanismo decantado
que me impregnou até ao lugar mais subterrâneo
hoje guardei debaixo do esquecimento
todos os relógios –
isto também é uma vertigem
uma sobrecarga de verbos e literatura
no palco de um cabaré
a vida e o tempo são um duelo
de gestos e sombras e luzes que se alongam
e a memória tantas vezes uma morte súbita
trazemos na alma um vaticínio de séculos
um destino com fisgas nas mãos
dependurando na braguilha ponteiros partidos
como se fosse só um passeio louco e matinal
podia mostrar-te as escravas que tragos nos dedos
a renascerem-me por épocas
aritmética de espantar quase sensata
com doses excessivas der banal
nasceram-me na língua fogueiras castradas
ferroadas de textos incapazes de nomear poetas
o perigo é a hipocrisia
a virtude estilística da própria carne
na mesma predestinação
isto que escrevo podia ser uma heresia ridícula
como horas vendidas a metro na feira da ladra
toda a voz tem ramos com céus e infernos
e todos os sentidos são essas cidades densas
a dar um certo 100 brilho à lírica
os que me ouvem comecem a sofrer toda a minha dor
e a rir - a rir - a rir com metáforas na ponta da língua
e um verso de amor “ queimado por mais fogos do que aqueles que eu ateei “
nem todos os livros são primeiros - nem segundos - nem terceiros
e nem toda a emoção é compilação rasurando obstáculos
nem todo o visível é concreto
nem toda a dança é etapa breve deste meu génio
ímpeto das minhas mãos com toda a metafisica lá dentro
veias privadas e escandalosas como um rio latente
sobre um lugar exaltado onde me nasceu o universo
digo agora mundo e babel
despois desembriagada
sou uma passagem por onde passa a solidão
tudo nos é labirinto numa quase violação
e todos nos dão impostura nas palavras
reduzidas a chão a beber na sola dos sapatos
nasceu-nos a morte no mesmo útero
uma multidão de riso com asas verdes
e esta vã nudez tão frágil –
para lá da ampulheta
os pés - o giz - a ponta dos dedos -
e os dentes a que estendo os olhos
burel de estopa como agasalho gasto
o que escrevo é este crivo e este redor sem direcção
este fantasma do instante como um lagarto
e a subir-me a pele teus olhos quase índios
vigília no meu sono
luzes desta hora em tropel pela garganta acima
onde a maré alta é esta arte de formigas
como um quartel de viúvas quase virgens
vida – este vício andante a que me dedico
a morder-me até à folha do caderno
em que escrevo tarde e sorte em cada letra
sino de gestos tocando poentes com jarros e bem me queres
xisto – uma criança na boca a pedir póneis e atenção
com gravidade nos olhos
vou por aí adiante na berma do caminho
a dar poemas aos pássaros
quanto tempo terá passado por aqui
a cismar nos vastos pensamentos uma certa metafisica
espantei sóis nas telas de linho ao terminar o dia
atirei filosofia à noite como os olhos dos amantes
nem tudo é caminho com bicicletas azuis às esquinas
onde não há barulho nem becos
e o espelho vai para lá do grito e das cabeças
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