terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

humanismo decantado - maria andersen

a violência do dia caí-me em cruz dentro e fora

a vida desce até um certo lugar

tão poucas vezes visitado

como um tempo deserto

seco e surrealista

e uma certa obstinação no rosto

podia dizer que estou neste humanismo decantado

que me impregnou até ao lugar mais subterrâneo

hoje guardei debaixo do esquecimento

todos os relógios –

isto também é uma vertigem

uma sobrecarga de verbos e literatura

no palco de um cabaré

a vida e o tempo são um duelo

de gestos e sombras e luzes que se alongam

e a memória tantas vezes uma morte súbita

trazemos na alma um vaticínio de séculos

um destino com fisgas nas mãos

dependurando na braguilha ponteiros partidos

como se fosse só um passeio louco e matinal

podia mostrar-te as escravas que tragos nos dedos

a renascerem-me por épocas

aritmética de espantar quase sensata

com doses excessivas der banal

nasceram-me na língua fogueiras castradas

ferroadas de textos incapazes de nomear poetas

o perigo é a hipocrisia

a virtude estilística da própria carne

na mesma predestinação

isto que escrevo podia ser uma heresia ridícula

como horas vendidas a metro na feira da ladra

toda a voz tem ramos com céus e infernos

e todos os sentidos são essas cidades densas

a dar um certo 100 brilho à lírica

os que me ouvem comecem a sofrer toda a minha dor

e a rir - a rir - a rir com metáforas na ponta da língua

e um verso de amor “ queimado por mais fogos do que aqueles que eu ateei “

nem todos os livros são primeiros - nem segundos - nem terceiros

e nem toda a emoção é compilação rasurando obstáculos

nem todo o visível é concreto

nem toda a dança é etapa breve deste meu génio

ímpeto das minhas mãos com toda a metafisica lá dentro

veias privadas e escandalosas como um rio latente

sobre um lugar exaltado onde me nasceu o universo

digo agora mundo e babel

despois desembriagada

sou uma passagem por onde passa a solidão

tudo nos é labirinto numa quase violação

e todos nos dão impostura nas palavras

reduzidas a chão a beber na sola dos sapatos

nasceu-nos a morte no mesmo útero

uma multidão de riso com asas verdes

e esta vã nudez tão frágil –

para lá da ampulheta

os pés - o giz - a ponta dos dedos -

e os dentes a que estendo os olhos

burel de estopa como agasalho gasto

o que escrevo é este crivo e este redor sem direcção

este fantasma do instante como um lagarto

e a subir-me a pele teus olhos quase índios

vigília no meu sono

luzes desta hora em tropel pela garganta acima

onde a maré alta é esta arte de formigas

como um quartel de viúvas quase virgens

vida – este vício andante a que me dedico

a morder-me até à folha do caderno

em que escrevo tarde e sorte em cada letra

sino de gestos tocando poentes com jarros e bem me queres

xisto – uma criança na boca a pedir póneis e atenção

com gravidade nos olhos

vou por aí adiante na berma do caminho

a dar poemas aos pássaros

quanto tempo terá passado por aqui

a cismar nos vastos pensamentos uma certa metafisica

espantei sóis nas telas de linho ao terminar o dia

atirei filosofia à noite como os olhos dos amantes

nem tudo é caminho com bicicletas azuis às esquinas

onde não há barulho nem becos

e o espelho vai para lá do grito e das cabeças



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