quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

hora barroca - maria andersen

esta hora inspira grandes poetas - a rua cobre-se de um silêncio quase líquen – um jazz
esborda-me os ouvidos e o café sabe-me a viagem - 14h cheguei para o turno da tarde –
encontrei-o na habitual solidão depois de o distrair do lugar de si próprio – contemplamos
juntos o instante – trocamos palavras chave onde tudo é um jogo social . todo o lugar é
outonal – as rotinas sempre sedentárias, sem nenhuma outra existência . enquanto eu penso e
escrevo frases inacabadas – alma sentida como um andrajo que flutua ao vento e de caminho
confraterniza com outras almas . o tempo pesa em qualquer lugar do último verão – tudo nos
acontece uma só vez . a única peregrinação é deambular de sonho em sonho – como de lugar
em lugar nas leves reservas do olhar – albergue onde nos guardamos. a rua é antiga e aberta
ao êxtase da natureza. o céu abre-se de azul, o monte é um jardim desaparecido – iminente –
penso quando me falas do teu pai, das lágrimas que por vezes te sulcam o rosto – a chuva é
numerosa em certos dias e o mar carrega-nos o peito. às vezes os pés entorpecidos – o
tempo todo a correr-nos nas mãos – e temos mais caminho que pés – tudo me é no
pensamento um filme – joelhos dobrados sobre a flor de burel - a infância é sempre um
presença, um domicilio em que nos entranhamos – a arte esbraceja-me nas mãos- nos olhos –
na boca – no pensamento, e sucedem-se aqui grandes desertos – carruagens de esboços,
pensamentos sem rentabilidade – palavras herméticas – gíria deste tempo tão dividido. há
lugares da terra tão bonitos que gostaríamos de os apertar ao coração . aqui a vida dura como
presa à raiz da terra. eu própria sou terra com o mesmo vício – um refugio de eremitas onde
me brota a criação – eterno lugar humano . a ponte é romana – a arquitectura o selo – o rio
um baú de histórias e de séculos e uma certa elegância primitiva – é novembro e o dia tem a
mesma rotina implacável – bebo em lentos goles licor beirão e escrevo de pensamento
inundado de olhos e de rua – esta rua onde me exilo quebrando a abstracção – aqui onde o
virtuosismos das vozes me assalta – onde a saudade de ti é mais extensa e tudo é mais sonoro
– estou aqui sentada a querer escrever o que não sei – lento exercício de mim mesma – tudo
me exila como uma claustrofobia – o bar nostálgico – o telefone que toca – a via larga das
palavras onde nos entendemos – a arte do que somos e fazemos – os recantos íntimos onde a
vida subsiste – o zinco verde da porta batida – uma rendilhada arquitectura com desenhos
inimitáveis – escuto miles davis – a boca esculpindo-se nos blues e bob dilan cedilhando-nos a
vida de uma rima cannabis obsessiva a riscar o incerto – a volúpia sovando o céu do Índico sal
– assim eu danço nos olhos do flamingo nua regurgitando-me de línguas bifurcadas -
sobrevivemos de um extenso dicionário – de um carrinho de rolamentos que outrora era
léxico quotidiano de um génio que nos junta à festa – assim digo-te – sofre, bebe, droga-te,
anda de cócoras e mostra o falo às palavras deste tempo fracturado – deste olhar exposto à
miséria – nascemos primogénitos e assim permanecemos onde o eco nos repetir – além das
servidões humanas gritamos á porta da morte – foda-se! – como inocentes animais banhados
de Nilo – vamos a lavrar de enxada nas mãos o poema que nos consome de guerra a garganta
– os poemas são masculinos e femininos e enchem as praças – estala a noite e o tempo – e
começam nas línguas das aves os fuzilamentos – encerra-me a boca e os ouvidos - dá-me do
poema o derradeiro aceno – a caligrafia gaga – os punhos cerrados e o tempo todo nos forros
das algibeiras - jorra-me assim no sangue a minha humanidade – a palavra expatriou-se e o
que digo é a esquina do mundo – um país por fazer – uma viola que tocas até ao último
mistério onde se solta a profecia – remoto culto – prazo de coisa fugaz onde se pariu o
crepúsculo prenhe de sombra e de charro – sexo no poemacto - repara como os dias crescem
manhãs como os pássaros à toa num sol de cidades imprescindíveis perfilando os ventos com

palavras sem dentro – capim onde adormeço acenando à memória com um suor moreno
tingindo o pó desses mortos já tão maduros em nossas bocas primogénitas - olhos de grandes
fogueiras onde o céu nos tomba por dentro fulminante – leve – droga heroína onde nos bate
o corpo – deuses que são mitos quebrados contra os dentes – orgasmos convulsivos de todas
as coisas – outros dedos estilhaçados como um bafo de hienas na savana – berro a história
sem qualquer mágoa – com vómito de certos olhos faquires apontando as sombras – alemo-
nos à busca de qualquer astro - do vinho nasceu o canto – da fome nascemos nós colonizando
de inquietação a saudade – escuto coisas em que me deslumbro – pólen pousado no sol -
cineolho alargando do mundo o úbere - amplidão vivendo –me a pele neste barro mátrio -
nudez que a prumo habito – numa rectidão - barco ancorado à varanda na memória das
viagens calcinadas – rumor derrubando estátuas com mãos de terra e asfalto como semente
onde o fruto já clama – hei-de fazer-me monge – crescer à sombra de um choupo branco – ser
sangue no desejo da bravura, nas horas dos mil poemas de onde desato os prodígios – cripta
da palavra onde a escassez é hossana – louvada seja a graça e a garça - a fundura – o mar – o
ex-voto e o busto brando – a frine de draxiteles que comoveu o juís – o pudico botão de rosa
que não se abre – o mês que se perde no poente – arignota de safo – ausência onde a luz se
expande – ovo de ser original como uma estrofe fêmea – saber que ao poeta chancela os
lábios – sacro poema que com o dentro pinto a alva liturgia de um grito que em origem me
rebenta na boca

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