sábado, 30 de março de 2013

enquanto passa o tempo - Vivaldo Varella

eu sou a luz (do universo) e não me vês
eu sou o caminho (verdadeiro) e não me segues
eu sou a verdade (absoluta) e não crês em mim
eu sou a fé (que remove montanhas) e me desprezas
eu sou o poder (incomensurável) e não me temes
eu sou a simplicidade (criança inocente) e não me assemelhas
eu sou a caridade (que a todos socorre) e não me obténs
eu sou o sol (que ilumina a humanidade) e continuas na escuridão
eu sou a estrela guia (o destino certo) e não me encontras
eu sou a nuvem (maravilha incomparável) e desconheces minha transformação
eu sou a chuva (que limpa o mundo) e não te lavas
eu sou a harmonia (paz e tranquilidade) e discordas de mim
eu sou o jardim de deus (morada bendita) e recusas minha flor
eu sou o pão (da ressurreição) e dele não comes
eu sou o vinho (da imortalidade) e dele não bebes
eu sou a sabedoria (de todos os povos) e não me conheces
eu sou o mar (fonte do sal) e não te purificas
eu sou a aurora (com todo seu esplendor) e não observas meu despertar
eu sou a humildade (pomba singela) e és a arrogância
eu sou o manto divino (misericordioso) e ficas ao desalento
eu sou a água cristalina (inconfundível) e só encontras o lodo
eu sou a tolerância (divino perdão) e não perdoas
eu sou a salvação (glória eterna) e não me aceitas
eu sou a vida (de todos) e não me procuras
eu sou a eternidade (d'alma) e não me buscas
eu sou a reencarnação (do corpo) e não voltas para mim

sexta-feira, 29 de março de 2013

hoje tem espetáculo - torquato neto

Vá ao cinema: presta?
Vá ao teatro: presta?
Esses filmes servem a quê?
Servem a quem?
Essas peças: servem? Pra quê?
Divirta-se: teu programa é esse,
bicho: vá ao cinema
vá ao teatro, vá ao concerto
disco é cultura, vá para o inferno:
o paraíso na tela no palco na boca
do som
e nas palavras todas
na ferrugem dos gestos e nas trancas
da porta da rua
no movimento das imagens: violência
e frescura: montagem.
Divirta-se. O inferno
é perto é longe, o paraíso
custa muito pouco.
Pra que serve este filme, serve a
quem?
Pra que serve esse tema, serve a
quem?
De churrasco em churrasco encha
o seu caco,
amizade. Cante seresta na churrascaria
e arrote filmes-teatros-marchas-ranchos
alegrias e tal: volte (como sempre)
atrás,
fique na sua
bons tempos são para sempre — jamais
bata no peito, bata no prato, é
assim que se faz
a festa. Reclame isso: esse filme
não presta
o diretor é fraco e essa história eu
conheço
esse papo é pesado demais pras
crianças na sala
é macio, é demais: serve a quem,
amizade?
Teu roteiro hoje é esse, meu bicho: cante
tudo na churrascaria
não saia nunca mais da frente fria
sirva, serve, bicho, criança, bonecão
sirva sirva sirva mais
churrasco churrasquinho churrascão.
Sirva um samba de Noel, uma ciranda
uma toada do Gonzaga (o pai),
aquele samba
aquela exaltação de um iê-iê-iê
romanticosuavespuma
bem macio
um filme de mocinho e de bandidos
uma peça qualquer com muito
drama:
encha o caco, amizade, tudo é
porta
e vá entrando à vontade, a casa
é sua, entre
pelos filmes em cartaz, pelas peças
sobre os palcos
vá entrando pelo papo, entrando
pelo cano
geral; coma churrasco, sirva, vá
entrando
e servindo (a quê a quem?)
encha o seu caco. Divirta-se, bata
no prato
e peça bis, reclame, cante o quanto
queira
afaste o lixo, nem pense:
teu programa é esse mesmo, bicho.

quarta-feira, 13 de março de 2013

sábado, 9 de março de 2013

artista esquecido - yiánnis ritsos

um desenhista, durante a tarde, desenhou um trem.
o último vagão destacou-se do papel
 e voltou sozinho para o depósito.

exatamente nesse vagão é que estava sentado o desenhista.


* TRADUÇÃO: JOSÉ PAULO PAES

quarta-feira, 6 de março de 2013

deja la curia, pedro - dom pedro casaldáglia

Desmonta o sinédrio e as muralhas,
...Ordene que todos os pergaminhos impecáveis sejam
alterados pelas palavras de vida, temor;

Vamos ao jardim das plantações de banana,
revestidos e de noite, a qualquer risco,
que ali o Mestre sua o sangue dos pobres.

A túnica/roupa é essa humilde carne desfigurada,
tantos gritos de crianças sem resposta,
e memória bordada dos mortos anônimos.

Legião de mercenários assediam a fronteira da aurora
nascente e César os abençoa a partir da sua arrogância.
Na bacia arrumada, Pilatos se lava, legalista e covarde.

O povo é apenas um “resto”,
um resto de esperança
Não o deixe só entre os guardas e príncipes.
É hora de suar com a sua agonia,
É hora de beber o cálice dos pobres
e erguer a Cruz, nua de certezas,
e quebrar a construção-lei e selo- do túmulo romano,
e amanhecer a Páscoa.

Diga lhes, diga-nos a todos
que segue em vigor inabalável,
a gruta de Belém,
as bem-aventuranças
e o julgamento do amor em alimento.

Não te conturbes mais !
Como você O ama,
ame a nós, simplesmente,
de igual a igual, irmão.
Dá-nos, com seus sorrisos, sua novas
lágrimas,
o peixe da alegria,
o pão da palavra,
as rosas das brasas...
...a clareza do horizonte livre,
o mar da Galiléia, ecumenicamente, aberto
para o mundo.

terça-feira, 5 de março de 2013

rosalía de castro

não cuidarei dos rosais
que ele deixou, nem dos pombos,
que eles sequem, como eu seco,
que eles morram, como eu morro

Raramente publico aqui poetas consagrados, hoje abro uma exceção para Rosalía de Castro, poeta do séc. 19, nascida em Galícia, autora desta quadra deliciosa, retirada do livro Follas Novas, em tradução de Ecléa Bosi.

sábado, 2 de março de 2013

constância

acho que sou
daqueles filhos de deus, ateus
porque pela constância
sou filhos dos pais meus

sexta-feira, 1 de março de 2013

o mundo cão das horas - maria andersen

1 . o dia -

a alva gravidade do teu rosto

2 . morrer -

é a grande vocação das alvoradas

3 . as tuas mãos nas minhas –

não deixam de ser uma boa dose de humanidade

4 . a palavra –

é o único instrumento onde o silêncio insiste

5 . nas mãos

a rosa-vento do dia

nos olhos

o mundo cão das horas

6 . a viagem meu amor

é esta flauta que nos faz querer dançar

7 . ignoro o que não sinto –

os rostos

8 . a ciência –

imita toda a nudez da terra