sexta-feira, 11 de março de 2011

nasce-me à beira da boca uma maré de buscas - maria andersen

Nasce-me à beira da boca a vida –
como um jogo de perícia  mesmo quando arrebata
caçadora clandestina a disparar desatinos & ilusões pelo olhar
em que rebentam  as cordas tensas das horas como uma urgência latente
a ejacular sonhos  num halo de convulsões matinais –

os deuses estão  exaustos pela grande maré  das  buscas
gravada em sais de prata  & o canto dos cisnes na vagarosa luz dos gestos


& lá fora as horas pesam em cada passo que olho numa sede agressiva  & sonolenta
rumor que sinto por dentro a deflagrar no grito da cega fúria do andar
& a  carne                               em eminente cratera que se rasga até ao fundo
precária geografia da epiderme  madurando o outro tempo do tempo
tão demorado                            nessa indomável boca dos pássaros

um rio de palavras como protesto de uma matéria escassa  
um endereço preciso  pela alma dentro
nessa grave forma de dizer  que o amor é vadio
pela solidão das ruas sem agasalho                            entre   a pedra & a sombra

 lucidez acelerada do poema
como Cassandra fulminante  das horas
a cintilar a leve têmpera do vento

o chilreio das  aves  como um rio a vestir-me  
na devoção  das vozes que se erguem no crepúsculo

vaga flor  que construo pelo cálice  do que escrevo
modelando pensamentos entre os recifes da memória
&  tanta aridez que me grita aos ouvidos
Babilónias dos tempos no arremesso de Babel

soubesse eu  ficar quieta sem tocar palavras
sem dizer por elas o lado de dentro do pensamento
como um círculo cheio de nada
 que me esmagam  contra o peito  

dói sempre ser metade de qualquer coisa perdida
& sentir a prece dos joelhos que se dobram ao peso do poema

& o poema é no entanto tão leve aos meus olhos vagarosos

Eu olho tudo deste lado de cá da vidraça
 numa espécie de plafond   destinado a colher gritos fundos
que se erguem num espólio de  vozes  cor de  poente

enfim destrói-se a casa
 rasga-se o papel
                               & a alma  destinada a ser ela
pelo artesanal vocábulo  coalhado & tricotado na solidão

a vida é tantas vezes uma paragem longínqua
uma micro paisagem insuportável  no frio encoberto da noite
que se enche de bolor ao fim da tarde
mas nunca é tarde
para se ser corola de uma flor
para se ser corpo onde a cal já não penetra

fui algures outra coisa                                              agora sou isto
pela densidade dos  meus dedos nus
 aqui neste  espelho antecipados dos séculos
gota a gota o sangue & a  branca página do papel
nesta obsessiva vontade de fazer germinar árvores
com olhos abertos dentro do poema

2 comentários:

  1. Caríssima Maria Andersen, inevitávilmente tornei-me seu fã. Abraço

    ResponderExcluir
  2. o estilo diferenciado de Maria Andersen veio trazer a alma lusitana contemporânea a este espaço.

    ResponderExcluir