Nasce-me à beira da boca a vida –
como um jogo de perícia mesmo quando arrebata
caçadora clandestina a disparar desatinos & ilusões pelo olhar
em que rebentam as cordas tensas das horas como uma urgência latente
a ejacular sonhos num halo de convulsões matinais –
os deuses estão exaustos pela grande maré das buscas
gravada em sais de prata & o canto dos cisnes na vagarosa luz dos gestos
& lá fora as horas pesam em cada passo que olho numa sede agressiva & sonolenta
rumor que sinto por dentro a deflagrar no grito da cega fúria do andar
& a carne em eminente cratera que se rasga até ao fundo
precária geografia da epiderme madurando o outro tempo do tempo
tão demorado nessa indomável boca dos pássaros
um rio de palavras como protesto de uma matéria escassa
um endereço preciso pela alma dentro
nessa grave forma de dizer que o amor é vadio
pela solidão das ruas sem agasalho entre a pedra & a sombra
lucidez acelerada do poema
como Cassandra fulminante das horas
a cintilar a leve têmpera do vento
o chilreio das aves como um rio a vestir-me
na devoção das vozes que se erguem no crepúsculo
vaga flor que construo pelo cálice do que escrevo
modelando pensamentos entre os recifes da memória
& tanta aridez que me grita aos ouvidos
Babilónias dos tempos no arremesso de Babel
soubesse eu ficar quieta sem tocar palavras
sem dizer por elas o lado de dentro do pensamento
como um círculo cheio de nada
que me esmagam contra o peito
dói sempre ser metade de qualquer coisa perdida
& sentir a prece dos joelhos que se dobram ao peso do poema
& o poema é no entanto tão leve aos meus olhos vagarosos
Eu olho tudo deste lado de cá da vidraça
numa espécie de plafond destinado a colher gritos fundos
que se erguem num espólio de vozes cor de poente
enfim destrói-se a casa
rasga-se o papel
& a alma destinada a ser ela
pelo artesanal vocábulo coalhado & tricotado na solidão
a vida é tantas vezes uma paragem longínqua
uma micro paisagem insuportável no frio encoberto da noite
que se enche de bolor ao fim da tarde
mas nunca é tarde
para se ser corola de uma flor
para se ser corpo onde a cal já não penetra
fui algures outra coisa agora sou isto
pela densidade dos meus dedos nus
aqui neste espelho antecipados dos séculos
gota a gota o sangue & a branca página do papel
nesta obsessiva vontade de fazer germinar árvores
com olhos abertos dentro do poema
Caríssima Maria Andersen, inevitávilmente tornei-me seu fã. Abraço
ResponderExcluiro estilo diferenciado de Maria Andersen veio trazer a alma lusitana contemporânea a este espaço.
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